Não é nenhuma novidade que o que chamamos de história oficial reproduz discursos que chancelam a ordem vigente, com todos os seus preconceitos, práticas e exclusões a grupos humanos que estão fora do padrão homem-branco-cisgênero-heterossexual. Por muito tempo, a historiografia colaborou para o silenciamento da história de vida de mulheres, negrxs, indígenas e LGBT’s, e mesmo os historiadorxs mais experientes não estão imunes a toda carga de conhecimento preconceituoso que adquirem ao longo da vida.[1] Quando umx pesquisadorx se propõe a estudar a história dos excluídxs, vai se deparar com memórias de resistência que colocam em xeque os discursos do senso comum, que não cansam de repetir jargões de mau gosto, como: “índixs são preguiçosos”, “tem poucas mulheres na ciência porque elas não são racionais”, “negrxs só sabem viver encostadxs em cotas”, “gay só serve para trabalhar em salão de beleza, cozinha e passarelas”, “travestis são todas prostitutas. Assumir um trabalho honesto nenhuma quer”, e por aí vai.
Ignorar a existência de forças de coerção que empurram essxs indivíduxs para a marginalidade é muito mais fácil do que tentar entender porque as mulheres não são incentivadas a serem cientistas, porque negrxs precisam de cotas para entrar na universidade, quais as dificuldades de uma travesti para adentrar o mercado de trabalho formal. E mesmo aquelxs que fogem do limbo que lhes é reservado, ainda precisam provar constantemente que merecem estar ali. Como acadêmica, já ouvi inúmeros relatos de mulheres que foram assediadas dentro das universidades. Como curiosa, já ouvi inúmeros relatos de pessoas trans* que não conseguem um emprego formal. Como testemunha, já vi inúmerxs negrxs que, se não fossem por medidas como cotas raciais e Prouni, não estariam cursando uma graduação. Como amiga, meus ouvidos já serviram aos desabafos de amigos gays que acordavam levando porrada antes mesmo de ir para a escola.
Quando criança, todxs nós sonhamos com o que queremos ser quando crescer. E quantxs escritorxs, cientistas, professorxs, veterinárixs e presidentes existem por trás do olhar do seu jardineiro, da sua empregada, da telemarketing que te enche o saco no sábado de manhã? Cada pessoa tem uma história de vida para contar, que volta e meia a sociedade pisoteia e joga para debaixo do tapete.
Com isso, quero chamar a atenção para aquelas mulheres que não pouparam esforços para adentrarem o mercado editorial. Quando falamos em mulheres jornalistas, a primeira imagem que nos vêm à cabeça é de uma colunista de revista feminina que escreve sobre moda, relacionamentos, dicas de beleza e cuidado com os filhos. Nos grandes veículos de comunicação, como a revista Veja, Istoé, Época e Folha de São Paulo, são poucas as mulheres escrevendo sobre política, ciência, mercado de trabalho e economia. E mesmo nos veículos de esquerda comprometidos com os movimentos sociais, como a Revista Fórum e a Carta Capital, o número de jornalistas homens é superior ao número de mulheres.
Esse problema do mercado editorial brasileiro não é recente, sendo possível apontá-lo no surgimento da imprensa no país. Com a chegada da família real portuguesa no século XIX, o Brasil entrou em um ritmo de modernização nunca antes visto. Tivemos um grande crescimento demográfico, sobretudo nos centros urbanos,[2] e se durante o Brasil colônia a nossa economia era majoritariamente rural, no final do século começamos a testemunhar a industrialização. Foi em meio a esse cenário de transições que a imprensa brasileira surgiu, trazendo do exterior inúmeras ideias a serem consumidas pela nossa elite intelectual, como o positivismo e o liberalismo, e em certa medida o feminismo também. Mas se o positivismo e o liberalismo correspondiam aos ideais de progresso de uma elite letrada, masculina e branca, o feminismo já era retratado como uma abominação que transformaria as dóceis mulheres brasileiras em seres masculinizados, doentes e desviados do seu papel “natural” de esposa e mãe.
As primeiras feministas do país tiveram que se esforçar para publicar seus textos sobre igualdade de gênero. Sem a oportunidade de escreverem nos grandes veículos de comunicação da época, como o Jornal do Commercio, Diário de Pernambuco e O Paiz, as que tinham condições financeiras fundaram seus próprios jornais, cujas edições defendiam o sufrágio universal, o direito à educação, ao trabalho, à independência financeira e ao divórcio. A maioria publicava sob anonimato, temendo as represálias que poderiam sofrer.
O Jornal das Senhoras, fundado no Rio de Janeiro em 1852 pela argentina Joana Paula Manso de Noronha, expôs em sua primeira edição uma crítica ao mercado editorial que não abria espaço para mulheres, quiçá mulheres na chefia, assinalando com sarcasmo: “ora pois, uma Senhora a testa da redação de um jornal! que bicho de sete cabeças será?”[3] Em outro artigo de autoria anônima, a autora denunciou os riscos que a publicação sofria, queixando-se: “quem sabe, se o innocente Jornal das Senhoras, não vae soffrer algum auto de fé privado. Fallar nos direitos, na missão da mulher, na sua emancipação moral! Máo, máo; isto não é leitura que se deva permittir nas casas de familia.”[4] O Jornal das Senhoras teve uma vida breve, circulando entre os anos de 1852-1859, mas abriu espaço para que outras publicações feministas começassem a surgir, como O Sexo Feminino, O Bello Sexo, A Familia, O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, etc.
Se no Brasil oitocentista a maioria dos periódicos voltados ao público feminino era escrito por homens – geralmente padres e médicos higienistas – e falavam sobre maternidade, casamento e religião, imaginem a blasfêmia que era um jornal escrito por mulheres sobre pautas feministas? Josefina Álvares de Azevedo, Francisca Senhorinha da Mota Diniz, Narcisa Amália, Nísia Floresta, Violante Atalipa Ximenes Bivar, Gervásia Numésia Pires dos Santos Neves, Anália Franco e muitas outras conheceram bem as reações antifeministas do período, e já denunciavam as dificuldades para sobreviver no mercado editorial.
O cenário atual não é muito diferente. É óbvio que com o surgimento da internet a circulação de textos ficou mais fácil, mas se as feministas do passado tiveram que criar seus próprios jornais, as feministas do presente precisam se virar com seus blogs pessoais sem qualquer tipo de publicidade. Ganhos financeiros ou mesmo visibilidade para um grande público praticamente não existem, e mesmo as páginas de organizações reconhecidas, como o Geledés, possuem um número de visitas muito inferior ao de um grande portal. Quando o feminismo é abordado em uma página mais popular, não é raro vermos um homem sendo chamado para escrever sobre ele, e até mesmo as páginas da esquerda dão preferência a um jornalista já conhecido em lugar de uma mulher, um negrx ou uma pessoa trans* para falar sobre os seus movimentos sociais.
Além disso, temos um outro grande problema no nosso mercado editorial: ele é feito por QI, o famoso “quem indica”, e não é segredo para ninguém que muitas vezes aquele jornalista descolado conseguiu uma coluna por ser amigo de alguém do editorial. Meritocracia é uma ilusão, e são poucos os que conseguem uma coluna por escreverem realmente bem. Ninguém é gênix e xs superdotadxs estão ganhando dinheiro na NASA ou na Microsoft. Somos pessoas comuns batalhando para sobreviver, com a diferença de que algumas têm sorte de ganhar a vida fazendo o que gostam, enquanto outras precisam se virar com o que têm.
Se existem poucxs mulheres, negrxs, indígenas e LGBT’s escrevendo na grande imprensa, não é porque nós somos analfabetxs. É porque nos empurraram para o limbo, que é o nosso lugar.
Só que não!
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Tirei os prints de alguns veículos de comunicação que estão em evidência, apontando a diferença entre os números de colunistas mulheres X homens. Se eu fosse levar em consideração outras categorias, como orientação sexual, transgeneridade e raça, os resultados seriam ainda piores (clique nas imagens para ampliar):
Revista Fórum e seus colunistas. Mesmo hospedando o blog das Blogueiras Negras, a maioria dos escritores ainda são homens.
Shame on you, Carta Capital! De 29 colunistas, apenas UMA MULHER.
Prestem atenção na seção de “política, economia e opinião” da revista Veja. Nenhuma mulher…
Em compensação tem algumas mulheres na seção “variedades”, seja lá o que isso for.
Revista Istoé mais equilibrada, mas ainda tem apenas 4 mulheres para 10 homens.
Referências:
[1]SWAIN, Tania Navarro. “História: construção e limites da memória social”. Disponível em <http://www.tanianavarroswain.com.br/chapitres/bresil/his%20construcao%20e%20limites.htm#1>. Acesso em 30 Jul. 2014.
[2] Segundo José Murilo de Carvalho, a cidade do Rio de Janeiro recebeu 166.321 imigrantes só no ano de 1891. Ver: CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 16.
[3] NORONHA, Joana Paula Manso de. “As nossas Assignantes”. In: O Jornal das Senhoras: modas, litteratura, bellas-artes, theatros e critica, Tomo I, quinta feira, Rio de Janeiro, 1 de janeiro de 1852.
[4] “Quem sou eu e os meus propositos”: In: O Jornal das Senhoras: modas, litteratura, bellas-artes, theatros e critica, Tomo I, Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1852, p. 12.